Retomando o caso Kiss, foco nos caminhos que podem ajudar na elaboração dos lutos dos sobreviventes e familiares dessa tragédia que também me dói como ser humano, como pai. Trago referências da psicologia social e da psicanálise, cotejando com o direito penal e processual penal (vejam no link a nova contribuição do Dr. Rodrigo Shimitt, advogado criminalista).
A psicologia social trabalha com três paradigmas: O primeiro é que culpabiliza o indivíduo; O segundo, o Marxista, responsabiliza a sociedade. E o terceiro, o ético-estético, traz um olhar holista, vendo todos os vetores para pensar processos de subjetivação, inclusive os que observamos no trágico evento da Boate Kiss, que vitimizou todos os envolvidos.
Acredito que o primeiro paradigma se aplica bem à denúncia do MP em relação apenas aos quatro réus “fabricados” como homicidas dolosos, que arriscariam conscientemente cometer um bárbaro crime, se pondo em risco “kamikaze”, de perder patrimônio e serem presos.
Se optarmos pelo viés do segundo paradigma, estaremos apontando apenas as instituições públicas envolvidas. Então, me parece que o olhar mais amplo ficaria no terceiro paradigma que envolveria uma ética empática com a dor de todos no literal processo, tendo uma estética na escuta e palavra justa.
No entanto, o MP subjetivou, com chancela da grande mídia, todos que sofrem até hoje pelo horror das perdas, num luto que não é só pela morte dos entes queridos, mas pelas marcas psicológica na alma, nos corpos e que produzem sintomas, os mais variados e psicofísicos.
Ao processar os pais das vitimas por calúnia e denunciar apenas 4 dos 28 indiciados, o MP não deixou outra opção de “justiça”! Um juiz que se dirige à defesa apontando como relevante apenas as responsabilidades presenciais na tragédia, pode ser considerado imparcial? Fora um discurso cartesiano que dicotomiza razão, que supõe ser seu guia, de emoção!
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Ora, a emoção é impossível de ser desconsiderada entre todos os atores de um evento tão marcante! Vendo o que foi mostrado na NETFLIX e na globoplay, qualquer pessoa empática vai transbordar em emoção e pranto. Isso também é relevante para que haja um olhar que não passe pela rotulação dos réus como deliberados assassinos.
Quando a sobrevivente, que teve o irmão vitimizado, Jéssica Rosado, depôs, dizendo, sem ódio no coração, que os réus eram seres humanos (inclusive o pai dela abraçou o Kiko, um dos proprietários da boate), o juiz impediu a defesa de um diálogo com o mesmo réu.
Esse momento se afiguraria à justiça restaurativa que permitiria uma extensão de empatia à dor dos julgados pelo tribunal do Júri, não para uma impunidade, mas para quem sabe, uma virada à culpa, não ao dolo eventual.
Trago contribuição apontando caminhos que ajudem na superação de um luto individual e coletivo tão melancolizante. Freud nos ajuda e entender que um luto é normal, podendo levar até uns dois anos. No entanto, a melancolia é uma incapacidade de recolhimento libidinal do objeto perdido e de investimento em outro.
Em Lacan, entendemos que a melancolia pode chegar a níveis psicopatológicos gravíssimos, pois há uma colagem ao objeto que se perdeu (objeto a), com altos níveis de culpa e baixa-autoestima, mais que uma simples depressão, com risco de suicídio.
A superação da melancolia passa por se conformar com a perda do objeto. Essa possibilidade, que não é fácil para quem perde um filho, ficou na aposta da penalização dos 4 réus, num prolongamento pela falta de celeridade da justiça.
A psicanalista Maria Rita Kehl nos traz uma diferença entre ressentimento e indignação: O primeiro nos estagna (faz aliança com a pulsão de morte); o segundo nos traz uma implicação. E essa, entendo, com uma justiça que seja plena, sem vingança. E, quem sabe, movida pela compaixão também com o sofrimento dos réus, buscando com eles um verdadeiro Memorial que marque o evento como lição de precaução, respeito com o valor maior, a vida, sobremaneira de quem tem o poder de vigiar, fiscalizar, dando segurança a todos os espaços públicos que nesse Brasil a fora viviam e ainda vivem mal cuidados.
Alguns caminhos vêm sendo importantes no impedimento de maior melancolização dos envolvidos sobreviventes, como a exposição de fotos na praça, a perspectiva de um memorial e as manifestação de protesto por justiça. O processar a NETFLIX, que não é consensual entre os pais, pode ser repensado. Existem lutos, como esse, que a humanidade empática toma como seu. Por que as produções literárias, cinematográficas e memoriais, atinentes ao holocausto nazista seguem? A palavra e a escuta, dispositivos psicanalíticos de cura, passam pela expressão cultural e artística.
Sem judicializar, acho que tanto a NETFLIX quanto a globo play (que ficou de fora da revolta, não entendo!) já estão dando sua contribuição e talvez possam ajudar, além do simbólico, com investimento material no memorial a ser construído.
Acredito, ainda, ser fundamental um recolhimento de libido a ser investida na luta para que a “Lei Kiss” não seja flexível, a ponto de facilitar futuras tragédias, dando um consolo e sentido às lutas e lutos de quem sofreu tão dolorosas perdas.
Que o tempo para um novo julgamento seja, como diria Freud, de recordar, repetir (o desejo de justiça verdadeira) e elaborar simbolicamente tanto sofrimento, com uma restauração memorial digna e humanizada de vida a todos os atores de uma série que tenha um final mais leve.
Pragmaticamente, como a lógica do direito penal é eminentemente punitiva, não restaurativa, meu apelo se afigura a uma utopia, como algo difícil, mas não impossível. Uma opção melhor que uma melancolizante e vingativa distopia.
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, debatedor no “Café com Análise”, youtube).
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