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Desastres previsíveis

"Nunca se pensou algo semelhante" foi a frase da vez dos governantes do Sul. Com variações, a locução saiu da boca dos prefeitos, do governador, do prefeito da capital, dos negacionistas do aquecimento global e dos culpados.

Sim, há culpados. Essa semana, além de se cuidar das pessoas desamparadas, em abrigos, em casas de amigos, com a água baixando, pessoal voltando e encontrando tudo destruído, veio à tona todos os avisos dados por servidores, por organizações, por especialistas, mas tudo foi desdenhado pelos ditos gestores.

Tanto o prefeito da capital, Sebastião Melo, quanto o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, se embrulharam. Apareceram documentos. Não puderam negar. Mas eles tinham "outras prioridades".

Porto Alegre tem um sistema de proteção de diques, comportas e casas de bombas que vem desde as obras feitas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento em 1969. Porto Alegre conta com 24 quilômetros de diques externos incluindo a BR-290 (Freeway) e a Avenida Beira-Rio, e outros 44 internos, situados às margens de arroios. Lembrando que temos uma orla, uma beira de rio de mais de 70 km.

Criou-se aqui um Departamento para Águas Pluviais, cuidando das cheias, especialmente de nossos baixios. Falamos isso até porque mesmo os porto-alegrenses não se dão conta na correria deste mundo moderno líquido que há bairros inteiros abaixo do nível do Lago Guaíba. O Aeroporto Internacional Salgado Filho fica na antiga Várzea do Gravataí que com suas cheiras inundava esta parte do território. Com estas intempéries está fechado, podendo reabrir apenas em setembro.

Ainda com as chuvas de 2023 falava-se que o rio tinha invadido a cidade. Não, foi a cidade que invadiu o Lago Guaíba. "Guaíba" quer dizer o "rio que se alarga". Sim, por isso é um lago, formado por vários rios que vem de longe pelo território rio-grandense: Jacuí, Sinos, Caí e Gravataí. Lembrando que o Jacuí recebe antes de chegar aqui o Taquari, rio que devastou por duas vezes cidades em seu entorno em poucos meses.

O Rio Grande do Sul optou desde os anos 70 por fazer de suas terras um "tapete verde" de soja. Virou a monocultura gaúcha, um estado que tinha uma produção muitíssimo diversificada. Em 1985, o Estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares. Depois optou pelo seu "deserto verde" com a plantação de eucaliptos e acácia, para a produção de papel. Mesmo que esta expansão seja dos anos 70 para cá, ele já estava aqui há mais de um século.

Soja e eucaliptos! Enquanto isso, nada de aproveitamento de nossos microclimas, das possibilidades múltiplas de produção de alimentos. A melancia deu lugar à soja e aos eucaliptos. E assim por diante.

Planta-se até nas nascentes. Até na beirada do asfalto. As velhas e boas técnicas agrícolas foram substituídas pela "tecnologia do agro". Somos o Estado que mais trafica veneno.  Não há devidos planos de manejos de nada. Tudo é feito em nome da produção, do seu aumento a qualquer custo.

O governador propôs mudanças nas leis ambientais que levam à destruição do bioma pampa. O prefeito da capital impôs com sua base parlamentar a flexibilização das leis ambientais na capital

Não gastaram nada em prevenção. Nada de pensar em catástrofes quando eles ocorriam no país e no mundo. R$ 437 milhões na caixa do Departamento de Águas e Esgotos e nenhum conserto em casas de bombas e em comportas. Nenhuma ação do Estado na região dos Vales. Nada e nada! Agora, vem eles com suas caras de pau posando de vítimas da Natureza. Ora, não vão nos enganar. Haverá eleições municipais neste ano. Que o povo acorde de uma vez por todas, deixando de se enganar com a propaganda do agro, do progresso a qualquer custo, do consumismo, pensando mais na vida, na Natureza.

O Hino Rio-grandense fala que nossas façanhas sejam modelo à toda terra... Ora, não foram. Estas são uma mentira, nos envergonha o escravismo, a morte dos Lanceiros Negros na Guerra dos Farrapos. Que as nossas façanhas sejam reais agora: recuperação, reconstrução, em novas bases, com respeito à Natureza, diversificação da produção como fora no passado. E acima de tudo, respeito à Natureza.

 


 

Adeli Sell é professor, escritor, bacharel em Direito e vereador do PT em Porto Alegre.

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