Antes da construção da capela de São João Batista, concluída em 1874, a região que corresponde ao atual bairro São João contava com somente uma via de importância, a já referida Estrada do Passo d´Areia. Ainda demoraria décadas para que algumas transversais como 11 de Agosto, Dona Sebastiana, Souza Reis, entre outras, viessem a existir.
No entanto, há uma pequena via cuja origem se perde no século XIX, havendo referências a ela mesmo antes da construção da primitiva capela. Trata-se da atual Rua Augusto Severo. Hoje, ela é uma rua relativamente estreita, misto de residências e firmas. No século XIX, no entanto, era uma pequena travessa que se iniciava nas antigas chácaras do Estrada do Passo da Areia e se perdia no lodaçal da Várzea do Gravataí. É possível que este caminho tenha sido usado para que o gado bebesse água nos banhados da várzea.
Ainda hoje, muitos lembram de seu primitivo nome popular: Rua dos Cachorros. Segundo a tradição oral, havia por ali, ainda no século XIX, uma senhora que alimentava os cães famintos, que pela pequena via se aglomeravam. Até os anos 30, no entanto, o seu nome oficial foi Rua Gravataí. Em 1936, seu nome foi mudado para Rua Augusto Severo, homenagem ao político e pioneiro em invenções aeronáuticas. Não é por acaso, portanto, que essa rua termine no antigo Aeroporto de São João, do qual falaremos mais adiante.
No mapa de 1896, destacada em vermelha está a atual Augusto Severo. Repare que não existiam praticamente nenhuma via na zona norte em direção ao Cristo Redentor.
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Entre os que conhecem a história do bairro São João, há praticamente um consenso: ele teria se desenvolvido em torno da construção da capela destinada a São João Batista, obra empreendida por duas devotas irmãs, Clara e Felicidade Maria da Silva, conhecidas pela alcunha de “irmãs fumaça”. O objetivo do empreendimento teria sido simplesmente uma questão de devoção a São João Batista. Juntando esmolas, as duas irmãs teriam arbitrariamente construído o templo no terreno de uma antiga pedreira, propriedade da família. Esta é a versão que consta na Wikipédia, no site da paróquia e que também é asseverada por um Ary da Veiga Sanhudo, um dos principais cronistas sobre Porto Alegre. No entanto, há um texto que mostra não propriamente uma outra versão dos fatos, mas sim uma melhor explicação das motivações que levaram ao empreendimento da construção da capela.
Em 1922, Aquiles Porto Alegre – um dos mais importantes cronistas que Porto Alegre já conheceu – publica no livro “Paisagens Mortas” uma crônica intitulada “D. Clara Fumaça”. Neste texto, o autor nos conta um interessante caso:
Toda essa construção que aí está branqueando no meio do campo, com a casta alvura de uma hóstia, representa apenas o esforço de Dona Clara Fumaça, já velha e cheia de desgostos.
Ou seja, a construção da capela teria sido uma iniciativa somente de Clara Fumaça, uma senhora já bem idosa, e não também de sua irmã, Felicidade Maria da Silva. No entanto, Aquiles confirma que a construção foi obra de dinheiro levantado como caridade:
Apesar de tudo isso, andou de porta em porta, exposta ao sol, à chuva e ao frio, esmolando para as obras da capela.
(...)
E Dona Clara andava, já caindo aos pedaços, pela rua e sem abandonar o peditório que era feito com todo o tempo.
Naquela época não existiam bondes para São João e Dona Clara, para ir até a capela, era a pé ou trepada numa carroça, que se dirigisse para aqueles lados.
É impressionante se imaginar uma senhora idosa pedindo dinheiro pelas ruas da antiga Porto Alegre, enfrentando chuva, sol, frio. Tratava-se, sem dúvida, de uma grande obstinação (para não dizer obsessão) em construir a capela a São João Batista. Mas o que a teria levado a tal empreendimento e esforço? Simplesmente sua fé? A versão que Aquiles Porto Alegre nos traz é bem diferente. Segundo o cronista,
(...) quando moça, na flor dos anos, casou um português, que era mestre pedreiro.
Durante muito tempo viveram felizes numa casinha de porta e janela, à Rua da Igreja [atual Duque de Caxias], em frente à de Jerônimo Coelho.
Um dia, porém, o demônio entrou-lhe em casa, e virou a cabeça do marido, que era um bom homem pacato e ajuizado.
Parece-me que o estou vendo ainda, alto, forte, moreno, cheio de corpo e bigode raspado.
Numa noite de fogos do Espírito Santo, ele encontrou na Praça do Palácio [atual Praça da Matriz], uma cabrocha, de lábios grossos, olhos negros e ancas fartas.
Mal o marido botava o pé na rua, a mulher abria o chalé sobre os ombros e o seguia por toda a parte como uma sombra.
No trecho transcrito acima, fica claro que Clara Fumaça nem sequer morava na zona norte. Em uma tradicional festa religiosa da cidade, seu marido se encantou por uma moça muito mais nova e ela, irredutível, pôs-se a seguir o marido pelas ruas, espionando-o.
Única fotografia conhecida da antiga capela de São João. Fonte: Revista O Globo.
E a construção da capela a São João Batista?
A construção dessa igreja foi levada a efetivo por conselho de Mariana, uma preta feiticeira que morava no Alto da Bronze, no topo daquele barranco, que ficava em frente à Beneficência Brasileira União.
Foi ela, só ela quem meteu isso na cabeça da pobre velha, que vivia ralada de ciúmes e acreditava na feitiçaria da preta mina.
A mandigueira lhe encasquetara na cabeça que só o marido a procuraria depois de concluída a capela e rezada a primeira missa.
Era por isso que Dona Clara saía até com chuva a fim de conseguir os meios para ser erguida a capelinha.
Dona Clara Fumaça era de uma boa família e bem relacionada. A sua parentela estendia-se pelo Passo da Areia, da Mangueira, das Pedras, Morro de Santana até a Braquinha.
E, assim, ia entre os estranhos e os seus parentes colhendo os meios para realizar o seu sonho.
Dessa forma, segundo o que nos conta Aquiles, o que motivou a construção da capela de São João Batista foi um adultério e não somente a fé. Uma traição no seio de um casal já idoso, incendiada por uma promessa de que as coisas pudessem voltar a ser como eram antes foi a gênese do bairro.
Aquiles continua:
Concluídas as obras e rezada a primeira missa, ninguém lhe dava notícias do marido que andava quebrando a cabeça por aí, todo enrabichado pela cabrocha de olhos negros e ancas fartas.
Ou seja, o marido não voltou para casa. Termina o nosso cronista:
Eu a conheci como as palmas das minhas mãos, sempre pesadona e afadigada, com a mania de sua capela e com que o marido voltasse a casa, como a mandigueira lhe havia prometido.
Parece-me estar vendo-a ainda! Baixa, gorda, de saia bem rodada, óculos escuros, e de bigode forte com um ou outro fio de barba no rosto, como sentinelas perdidas, por aí afora.
Quando eu era criança, e me enlevava na leitura dos romances francesas, passando noites e noites em claro – conhecera o seu tipo grotesco na madame Pipelet dos “Mistérios de Paris”.
A humanidade tem desses caprichos, e vai ressuscitando, aqui e ali, os seus gênios ou os seus tipos grotescos de século em século.
Esta é a versão, até então, não oficial de um fato germinal da história do bairro.
Raríssimo exemplar de “Paisagens Mortas”. Acervo de Cristiano Fretta
Cristiano Fretta é escritor, professor e músico.
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