Perdeu a primeira parte da história do Olívio na Zona Norte? Leia aqui!
Passado algum tempo, em um dia de minhas férias escolares, eu acompanhei minha mãe à agência do Banrisul em que ela tinha conta, debaixo do Edifício Mário Trindade, ao lado do recém-inaugurado Bourbon Assis Brasil. Eu havia levado um carrinho para passar o tempo. Foi quando eu deslizava o meu brinquedo por cima do encosto de umas cadeiras vazias que eu vi, do outro lado dos balcões, caminhando com uma pilha de papéis debaixo do braço, o bigode que há algum tempo tanto estranhamento havia me causado.
Caminhei até minha mãe e perguntei:
- Mãe, aquele é o homem do farvestão?
Ela passou a mão em minha cabeça e disse, rindo:
- Sim, filho, é o Olívio Dutra.
Não pude deixar de, assim como da outra vez, tirar os olhos dele. Sua expressão era séria e compenetrada enquanto mexia em inúmeros papéis. De vez em quando se levantava, mas logo em seguida voltava a se sentar. Algumas pessoas falavam com ele, e até mesmo um sorriso eu consegui perceber por detrás do imenso bigode.
Quando havia só uma pessoa à frente de minha mãe na fila, eu perguntei:
- Tu não quer falar com o Olívio Dutra?
- Não, filho, eu não preciso falar com ele – ela me respondeu.
Eu fiquei um pouco decepcionado, pois queria muito observá-lo mais de perto. Apesar de ser apenas a segunda vez que o via, eu já nutria por aquela figura uma imensa curiosidade.
- Mas mãe, ele não trabalhava lá no Centro? – perguntei pouco antes de ela ser chamada ao atendimento.
- Ele trabalhava, mas não trabalha mais, filho.
Fiquei confuso. Por que ele não trabalhava mais no prédio dos leões? E mais ainda: como minha mãe sabia disso, se eu nunca sequer havia visto ela conversar com ele?
Alguns meses depois, eu assistia Chaves na televisão depois do almoço quando a programação foi cortada para a propaganda eleitoral. Eu chamei minha mãe e perguntei por que havia parado de passar o seriado mexicano.
- É a propaganda eleitoral, filho. Vai acontecer isso durante algum tempo, mas depois vai voltar a passar o Chaves normalmente. – disse ela.
Músicas repetitivas falavam o nome de homens. Apareciam números. Todos muito felizes, caminhando por ruas, empunhando bandeiras. Achei aquilo um pouco interessante, mas é óbvio que eu preferiria continuar vendo Chaves. Foi então que uma voz disse, enquanto imagens típicas do Rio Grande do Sul passavam pela tela: começa aqui o programa de Olívio governador, para um Rio Grande com coragem de mudar. Em seguida, seu rosto – ou melhor, seu bigode – apareceu imenso, enquanto ele sorria e discursava em cima de um carro de som. Eu imediatamente chamei minha mãe, que já havia voltado para a cozinha. Ela, um pouco contrariada por eu tê-la chamado novamente em tão pouco tempo, surgiu na sala e perguntou:
- O que foi, filho?
Eu apontei para a televisão e disse:
- Olha, mãe, o homem do farvestão.
- Sim, filho, é o Olívio Dutra.
- Por que ele está aparecendo na televisão?
Ela, preocupada com as batatas fritas que estavam fritando na frigideira na cozinha, respondeu já se virando de costas:
- É que agora ele quer ser governador.
- Para trabalhar de novo no prédio dos leões, mãe?
- Não, filho, governador não trabalha no prédio dos leões. O prédio dos leões se chama Prefeitura – respondeu ela, já se sumindo pela porta da cozinha.
Naquele momento, eu entendi que Olívio Dutra era um homem importante. De alguma forma, sua importância tinha a ver com o tamanho de seu bigode. Eu passei a mão debaixo do meu nariz e não me foi totalmente ruim a ideia de um dia cultivar um bigode como o dele. A questão era: será que eu seria tão importante como ele? Será que homens sem importância também poderiam usar bigode? Talvez fosse por isso que meu pai e meus tios faziam a barba quase todo dia.
Habituei-me a olhar a propaganda eleitoral, sem mais me importar com a interrupção de Chaves. Eu esperava que Olívio surgisse na tela, pois a curiosidade que eu nutria por ele era cada vez maior. Pouco tempo depois fiquei sabendo que ele não seria governador, mas sim um homem barbudo chamado Antônio Britto, que tinha outro número e outra música na campanha eleitoral. Senti um pouco de pena de Olívio por sua derrota.
No início de 1995, eu comecei a frequentar o apartamento de um colega de escola. Ele morava no edifício bem acima da agência do Banrisul em que eu havia visto Olívio. Não foi sem surpresa que um dia, enquanto eu e meu amigo ilegalmente jogávamos bola no corredor do prédio, eu vi Olívio Dutra surgir ao longe e caminhar em nossa direção. Eu segurei a bola e deixei-o passar. Ele sorriu para nós. Dessa vez, eu tentei sorrir. Assim que ele se sumiu em direção à portaria, eu perguntei ao meu colega:
- Tu conhece o Olívio Dutra?
- Claro que sim. Ele mora aqui – respondeu meu amigo, chutando a bola em minha direção.
O São João estava à margem, mas havia Olívio Dutra. O São João nunca aparecia na televisão, mas havia Olívio Dutra. Todas as pessoas que moravam no bairro eram sem importância, mas havia Olívio Dutra. Ele já não era mais o bigodudo que entrou na locadora: eu já havia percebido que ele era um homem muito importante e me sentia privilegiado por poder vê-lo pessoalmente.
- Tu sabia que ele gosta de farvestão? – eu disse ao meu colega, enquanto chutava a bola de volta a ele.
- E o que é farvestão? – me perguntou.
Eu bem que tentei, mas não soube explicar.
Cristiano Fretta é escritor, professor, músico e diretor do ZN Jornal
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